O conceito fundamental, para o ator, não é o ser do personagem, mas o querer. Não se deve perguntar quem é, mas o que quer. A primeira pergunta pode conduzir a formação de lagoas da emoção, enquanto a segunda é essencialmente dinâmica, dialética, conflitual e, portanto, teatral.
Mas a vontade escolhida pelo ator não pode ser arbitrária, antes será necessariamente concreção de uma ideia, a tradução, em termos volitivos - eu quero! dessa ideia ou tese. A vontade não é a ideia, é a concreção da ideia.
Não basta querer ser feliz em abstrato: é preciso criar algo que nos faça feliz, não basta querer poder ter a glória em geral, há que concretamente querer matar o rei Duncan em circunstâncias muito concretas e objetivas, portanto: ideia = vontade concreta em circunstâncias determinadas.
Exercer uma vontade significa, desejar uma coisa, a qual deverá necessariamente ser concreta. Se o ator (ou atriz) entra em cena com desejos abstratos de felicidade, amor, poder, etc; isso de nada lhe servirá, pelo contrário, ele (ou ela) terá que objetivamente querer fazer o amor com fulano (ou fulana) em circunstâncias concretas, para, então, ser feliz e amar. É a concreção , a objetividade da meta, que faz com que a vontade seja teatral. Todavia, essa meta e essa vontade, devendo ser concretas, devem ao mesmo tempo possuir um significado transcendente. Não basta que Macbeth deseje matar Duncan e herdar sua coroa. A luta entre Macbeth e todos os seus adversários não se reduz a lutas psicológicas entre gente que quer disputar o poder. A uma ideia superior que está em discussão em toda obra em que os personagens concretizam nas suas vontades. O Duncan significa legalidade feudal, Macbeth significa o advento da burguesia nascente - o direito do eu posso contra o direito do berço. Um tem o direito por nascimento, o outro tem o maquiavélico direito pelo seu próprio valor - ao qual Maquiavel chamava virtú. A ideia central dessa obra é a luta entre a burguesia e o feudalismo, e a vontade dos personagens concretizam essa ideia central.
A escolha da vontade, portanto, repito, não é arbitrária.
Da ideia central da obra, deduzem-se as idéias centrais de cada personagem. Neste caso, a ideia central da personagem Lady Macbeth, por exemplo, é a afirmação da virtú (burguesia) contra os direitos de linguagem. A ideia central da personagem deve responder a objetivo principal stanislaviskiano: ideia e vontade são uma e a mesma coisa, a primeira sob a forma abstrata, e a segunda sob uma aparência concreta.
Uma vez escolhida a ideia central da obra, deve ser absolutamente respeitada, para que todas as vontades cresçam dentro de uma estrutura rígida de ideias. Esta estrutura de idéias é o esqueleto. Por isso, a que se estabelecer qual é "a ideia central da peça" (ou do espetáculo) e a partir dai deduzir as ideias centrais de cada personagem, de modo, que essas ideias centrais se confrontem num todo harmônico e conflitual (ideia central = teste x antítese).
Ao observar a identidade ideia = vontade como criadora da emoção, devemos ter em conta que nem todas as ideias são teatrais. Ou melhor: são teatrais todas as ideias em situação, e não na sua expressão abstrata.
Em resumo: toda ideia, por mais abstrata que seja, pode ser teatral sempre que se apresente na sua forma concreta, em circunstâncias específicas em termos de vontade. Então se estabelecerá a relação ideia - vontade - emoção - forma teatral; quer dizer, a ideia abstrata, transformada. Em vontade concreta em determinadas circunstâncias, provocará no ator a emoção que, por si própria virá a descobrir, a forma teatral adequada válida e eficaz para o espectador.
O problema do estilo e outras questões surgem depois, e isso deve ficar bem claro: a essência de teatralidade é o conflito de vontades. "Essas vontades devem ser subjetivas e objetivas ao mesmo tempo." Devem perseguir metas que sejam também subjetivas e objetivas, simultaneamente, vejamos dois exemplos:
Uma luta de boxe, é um conflito de vontades, os dois antagonistas sabem perfeitamente o que querem, sabem como consegui-lo e lutam por isso. No entanto, uma luta de boxe não é necessariamente teatral. Também um diálogo de Platão apresenta personagens que exercem com intensidade as suas vontades: pretendem uns convencer os outros das suas próprias opiniões. Existe aqui também um conflito de vontades, mas também aqui não se trata de teatro nem a luta de boxe, nem o diálogo de Platão são teatro - porque (?)
o conflito no primeiro caso é exclusivamente objetivo, e no segundo exclusivamente subjetivo. Porém, tanto um como o outro, podem ser tornados teatrais. Por exemplo: o lutador quer vencer para provar alguma coisa a alguém - neste caso, o que importa não são os golpes objetivos, mas o seu significado. O que importa é o que transcende a luta propriamente dita.
No segundo caso, lembro aquele diálogo em que os discípulos tentam convencer Sócrates a fugir e não aceitar o castigo, a morte. Se vencem os argumentos dos discípulos, Sócrates não morrerá, se se impõe as razões de Socrátes, ele deverá tomar o veneno e aceitar a morte. Neste diálogo, tão filosófico, tão subjetivo, reside no entanto um fato objetivo importante e central: a vida de Sócrates.
Assim, tanto uma luta de boxe quanto uma discussão filosófica podem se tornar teatrais.
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foto de Léo Aversa |
Augusto Boal do livro Jogos para atores e não-atores 11º Edição, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 2008.
(postado por Filipe Macedo, preparação de atores, no encontro dia 11/02/2012)